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Povo Pankararu [Pankararu People]

Cântico de Aislan

Sigam com atenção

bolinha por bolinha sobre a superfície do linho cru

a propagação de um ponto

ínfimo e obstinado

a princípio independente solto

prontamente multiplicado

e absorvido

na trama de traços cruzados

ductos salpicados

hachuras bamboleantes.

Da repetição de unidades mínimas

em dezenas de tonalidades de branco

proliferam luxuriosas organelas celulares

listras serpenteantes

sem itinerário planejado.

A partir do ponto e do branco

produzir e ativar uma corrente de ondas

em formas envaginadas — estranhas coreografias.

Imaginem agora astros circulares

matriz germinante

de grãos ancestrais

kara wã, em tupi, talo com espinho

da família das bromélias

gravatá ou caraguatá

Croás em festa.

Aislan carrega esse duplo apreço

pelo detalhe e pela reiteração

sua prática tem parentesco

com a ética de bactérias, fungos, algas,

microrganismos complexos enzimáticos

que constituem viventes.

O sistema pictórico se autoexplica em Mitocôndria ancestral

deixando numerosos grânulos flutuarem

liberando enzimas no espaço intermembranar.

“Somos nós a praga que veio devorar o mundo”,

afirmou o líder ambientalista Ailton Krenak em 2020.

Desertificação da caatinga

Rio Negro, Rio Madeira, Rio Solimões em extinção

A crise climática devasta

saberes cosmológicos e saberes orgânicos.

Percebam

o traçado de um organismo multicelular

se converte em cartografia aérea

sugere sementes voadoras,

caules, pompons de Dandelion,

florescências de um jardim tropical moderno

escapulindo de um projeto de Burle Marx.

— Extraordinária —

Transição de cura

dentro de cada envoltório nuclear,

um tipo de existência essencial

círculos dando meia-volta e piruetas.

Obedecem a um movimento ameboide?

Citoplasma, metástase ou mandalas?

Vertigem não-narrativa flertando com as bordadeiras artesanais do Nordeste.

Como proteger seus parentes de mais saques?

Tu, que filtras os sonhos

e os labirintos de linhas ondejantes

deixe vibrar a pincelada e

confundir os acadêmicos

formalistas embebidos de abstração expressionista pollockeana.

Fronteiras movediças

as curvas na arte diferem do naturalismo da paisagem

e sangram nas margens superior e inferior,

tua forma sinuosa também sustenta um equilíbrio difícil

espécie de cocar em torno da pupila encharcada

íris recebendo um banho de luz.

Eriçado arrepiante.

As pinturas com pontos consagraram o estilo de artistas aborígenes da Austrália.

Suas linhas pontilhadas sobre a areia ou pintura corporal

disfarçam desenhos religiosos

— mostrar sem revelar, eis a técnica

transmitir histórias

guardando o sagrado.

Se histórias secretas simplesmente não pertencem ao domínio público

como apresentar um dispositivo simbólico cuja integridade recusa sua entrega?

Escrever sobre as obras de Aislan Pankararu consiste em assumir de saída

o fracasso

a falência daquela crítica de arte

qualificada para recobrir seu objeto com significados externos.

O enigma há de pairar.

É preciso

imaginar essas pinturas dançando…


 

Lisette Lagnado, 11/03/23

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