Dançando com Brancos - Lisette Lagnado
Escrever sobre as obras de Aislan Pankararu consiste em assumir de saída o fracasso
a falência daquela crítica de arte
qualificada para recobrir seu objeto com significados externos.
O enigma há de pairar.
É preciso
imaginar essas pinturas dançando...[1]
No “país da cobra grande”[2], a bibliografia dedicada à caracterização da identidade nacional passa por dois textos canônicos: o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), ambos da lavra de Oswald de Andrade. São obras que, destinadas a exaltar a diversidade da formação étnica brasileira, procuram ser respaldadas por “fatos estéticos”. Seu estilo oscila entre o solto e o abertamente desvairado, como exemplifica a sentença: “O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça”.
Mais do que compreender apenas a paisagem de um país, os textos expõem o desejo de captar uma fisionomia moral por meio das atividades de seu povo: “O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A vegetação.” Da sequência de aforismos, sobressai uma cartilha previsível: de como cantar as mil e uma riquezas de uma terra estrangeira com a façanha de safar-se do choque civilizatório. Autodeclarado anticlericalista, Oswald de Andrade escrevia como se andasse nu, não lesse jornal, não pertencesse à elite, em resumo, ele se permitia zombar “[d]a prática culta da vida” como se não fosse um homem branco. O que não o impediu de sustentar o projeto, nada dissimulado por sinal, de levar a estética Pau Brasil para exportação.
E, de fato, antenado com os movimentos da Velha Europa, o roteiro intelectual dessa modernidade nascente conquistou o mundo. Foram praticamente cem anos destinados a repertoriar referências tanto etnográficas como populares, redigindo prefácios, teses e polêmicas, a partir de viagens exploradoras. Considerando que pesquisas são expedientes que também resultam em pilhagens, há quem explique a apropriação lançando mão do argumento das contradições inerentes à época em questão. Em resumo, de que maneira uma cartografia poderia ser concebida sem se apropriar dos princípios da cultura material alheia?
Desde então, porém, os rumos do debate adquiriram importantes nuances autocríticas e, hoje, o eruditismo desses Manifestos denuncia sua inter-relação com a “colonialidade do saber”.[3]
Essa pequena digressão temporal serve para constatar que, se os termos identitários definem a consciência cultural do País, o espólio modernista não consegue escorar a produção de artistas comprometidos com a cosmovisão de sua ancestralidade. Destarte, trata-se de inventar a chave para aprender a ver aquilo que escapa radicalmente das teleologias do Ocidente. Para este feito, não existem normas exclusivas. A ideia de “multiplicidade de racionalidades” defendida pelo pensador e músico senegalês Felwine Sarr corresponde a uma articulação de forças críticas e reflexões que envolvem intuição e sensibilidade, dimensões anteriormente menosprezadas.[4]
O trabalho de Aislan Pankararu faz coro com a mudança de paradigmas em curso. Nascido em 1990 na cidade de Petrolândia (Pernambuco), formado em Medicina pela Universidade de Brasília, iniciou sua prática artística conjugando o estudo da estrutura molecular das células com os motivos cosmológicos de seu povo e um respeito reverencial pela Caatinga, bioma que o viu nascer e crescer. Não demorou para entrelaçar esses elementos, aparentemente distantes, atraído pela unidade básica da vida. Quando indagado a respeito de seu programa estético, o artista invoca tão-somente a expressividade de sua energia vital. Ao propor um método intuitivo, Aislan traz à tona o afeto e a memória de seu território, santuário de mil segredos, ao mesmo tempo que a não-entrega de conteúdos sagrados constitui o núcleo duro de sua resistência. Somos sensíveis à vibração das linhas espiraladas sem entender a mensagem oculta. Nessa mesma toada, cabe recordar uma prática corrente entre os grupos aborígenes do deserto australiano que, igualmente cansados de confiar seus mitos e sonhos a exploradores afoitos, transferem seu conhecimento milenar sobre deslumbrantes telas pontilhadas de bolinhas brancas (dots). Salvo para iniciados, as composições não oferecem um enredo narrativo, sequer uma mínima figuração. Nada mais apropriado quando pesam, na mesma balança, as lutas pela terra e pela autodeterminação (leia-se também a subjetividade).
Ora, quais são os regimes estéticos autorizados a legitimar a produção indígena? Não estaria a percepção artística intrinsecamente vinculada ao discurso etnocentrista? Desde a curadoria de Magiciens de la Terre [Mágicos da Terra] em 1989, por uma equipe liderada pelo historiador de arte Jean-Hubert Martin [5], foram publicados inúmeros artigos acadêmicos analisando a inserção do chamado “outro” em mostras internacionais. Não tenciono seguir por essa trilha, mas se trago esse marco aqui é com a finalidade de pontuar o fascínio exercido pela aura do “primitivo” na retórica modernista. Apesar de carregar significados inequivocadamente ofensivos, o conceito circulou até a primeira metade do século 20, cenário que só irá mudar no final dos anos 1980. Com o impacto da globalização, a diversidade cultural foi supostamente elevada em prioridade enquanto a formulação dos critérios de inclusão permaneceu reservada aos mesmos protagonistas. Escusado dizer que nunca se menciona a violência que acompanha a inserção institucional, como se fosse o preço equânime a ser pago para dançar com os brancos.
Sendo assim, o termo “mágico” do título daquela exposição não significou uma verdadeira filosofia da alteridade, mas a continuidade da prática dos gabinetes de curiosidades. Nessa linha de raciocínio, houve um sequestro da dimensão da magia, conceito fundante para os povos originários. Engendrou-se um estado de “maravilhamento” de alto teor fetichista. O efeito mais imediato se fez sentir na domesticação do caráter sagrado da vida, transformando em apanágio exótico a dimensão espiritual celebrada em festas, rituais e cerimônias.
Profanação do sagrado ou consagração do profano? Para responder a indagações de ordens múltiplas, a prestigiada revista Third Text dedicou um número especial a partir da edição nº 28 de Les Cahiers du Musée d’Art Moderne. [6] Com muita perspicácia, o artigo de Rasheed Araeen, “Our Bauhaus Others’ Mudhouse”, traçou interessante paralelo entre povos tradicionais e “povos da mercadoria” (terminologia de Davi Kopenawa Yanomami) no qual procurou evidenciar as dinâmicas por trás da estratégia da globalização: se a expressão artística do mundo não ocidental sempre esteve atenta à valorização de suas próprias raízes, já a praxe dos artistas europeus se caracteriza pela observação de civilizações remotas. Não poderia haver mais aguda descrição da pilhagem colonial.
O autor prossegue sua análise com uma série de considerações que, basicamente, alertam para a ausência de uma perspectiva teórica que justifique a reunião de obras de distintas formações históricas. Enquanto não houver uma profunda reversão de padrões de comportamento baseados em privilégios (raciais acima de tudo), é o tom paternalista que impera, mesmo quando se louva, por exemplo, o caráter rústico de técnicas manuais. A relação com o artesanato não esconde uma certa altivez. Por trás do elogio à produção manufatureira reside a (preconceituosa) cisão do sujeito, ora portador de um “dom” inexplicável, ora dotado da capacidade cognitiva de criar imagens, jamais apto a combinar ambos. Por sorte ou destino, graças a seus estudos científicos voltados para os campos da biologia e da genética, Aislan vislumbrou nas células a inteligência ancestral que vemos em suas telas. Pensando nesses termos, a noção de repetição, usada para tipificar as pinceladas, talvez seja inadequada. O exercício de propagar pontos, hachuras e ductos, revela a dura concretude do mistério do porvir.
É certo que nenhum Pankararu precisa ter lido Bergson para transmitir uma percepção inseparável de matéria e duração, e é o que a tela Mitocôndria ancestral (2023) condensa com maestria. Sem perder tempo com inúteis derivas biológicas ou evolucionistas, encontramos em ambos uma pulsão vital e criadora, que os nutre de sentido cósmico. A ideia de existir uma energia para além da matéria bruta proporciona uma espécie de intuição consciente, um dos mais belos paradoxos do pensamento bergsoniano. Aos olhos do Ocidente, uma demonstração dessa natureza implicou uma reviravolta anticartesiana; não para um artista íntegro com sua comunidade, cujos ensinamentos procedem continuamente na retroalimentação do corpo com o espírito.
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Antes de concluir a presente introdução ao processo criativo de Aislan Pankararu, gostaria de arriscar uma perspectiva que não seja a do saque, visando identificar uma outra dança, não-predatória, entre figuras singulares que nunca se encontraram, mas coexistem no plano bem-aventurado do virtual.
A trajetória da arte ocidental foi várias vezes atravessada de rasgos epifânicos, suspensão da Razão, sobretudo durante períodos de guerras intensas (não que o mundo tenha um dia conhecido a paz). O que se convencionou denominar “vanguardas artísticas do início do século 20” não existiria sem a persistência de interesses filosóficos pela dimensão espiritual. Nesse contexto, a célebre frase de Paul Klee, de 1921, “tornar visível o invisível”, ressoa como um clarão para nos lembrar o “naturalismo ampliado” do mestre da Bauhaus. Importa perceber uma energia vital, espécie de libido, que foi tão questionada no seu circuito conceitual que o artista precisou refutar comparações com a “arte primitiva”. Como sintetizou Otília Arantes: “O que conta, pois, são as composições das linhas, sua dança, a linha enquanto energia, enquanto ação, movimento.” [7]
Em seu fazer, ao investir uma carga intuitiva maior do que ilustrativa, Aislan também “torna visível o invisível”. O movimento de suas “ondas germinantes” expande o traço gráfico em feixes ziguezagueantes. Pode-se afirmar que o artista não reproduz a energia vital, recebe-a. Semelhante depoimento foi registrado pela fotógrafa Claudia Andujar, contando que quando Claudio Yanomami foi convidado a desenhar “simplesmente, sem nenhum tema”, o autor delineou um padrão e disse que representava a vida de seus dedos, a força vital emitida por seus dedos, pura manifestação de energia. [8]
Nesse sentido, o componente energético do ato criador alcança outro estágio mental, a trama da cura, que percorre vários trabalhos de Aislan Pankararu, sem a necessidade de enunciar as dores do mundo engolfadas no curso degenerativo do planeta e na iminência do colapso. Silêncio carregado de tinta branca. Uma figura como Klee tampouco reproduziu o visível para, de certo modo, forçar uma percepção mais ativa.
À guisa de conclusão temporária, vale admitir que a liturgia da crítica contemporânea mudou substancialmente nas últimas décadas, ainda que as relações entre os países do centro e da periferia permaneçam baseadas na desigualdade. Interessa nomear os fatores que lograram desviar o paradigma das vanguardas eurocêntricas de sua enfadonha rota narcísica. Não por acaso, as salas de exposições de história natural e de antropologia foram as primeiras a exigir a revisão de fichas técnicas que classificam artefatos etnográficos dentro de categorias como se fossem objetos inertes. Triste ironia, o mesmo Museu Nacional que o Manifesto de Oswald de Andrade coloca lado a lado com a Floresta completou agora cinco anos do trágico incêndio que levou 80% de seu acervo enquanto sabemos que o desmatamento da Amazônia, catástrofe iminente, está se aproximando do ponto de não retorno. É a vez então de Aislan lhe devolver o adágio sob a forma de pergunta: quem pode se dar o luxo de “ver com os olhos livres”?
Notas
[1] Versos finais do “Cântico de Aislan”, escrito pela autora em novembro de 2023 por ocasião da primeira exposição individual do artista na Galeria Galatea, em São Paulo.
[2] Alusão ao mito da criação do mundo na cosmovisão indígena da Amazônia. Todos os trechos entre aspas aqui, sem concomitante referenciação, são extraídos dos Manifestos de Oswald de Andrade.
[3] “Colonialidade do saber”: dimensão epistêmica da colonização. O sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005) desenvolve este conceito para referir-se à imposição do modelo humanista eurocentrado.
[4] Felwine Sarr, “A África precisa inventar sua metáfora de futuro”. Entrevista concedida à jornalista Carolina Keve [Tradução do CEPAT], publicada por Clarín — Revista Ñ, junho de 2019. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/590248-a-africa-precisa-inventar-sua-metafora-de-futuro-entrevista-com-felwine-sarr> [último acesso em: 28/12/2023].
[5] A exposição foi realizada em 1989 no Centre Georges Pompidou e na Grande Halle de La Villette, em Paris.
[6] Os textos são assinados por: Yves Michaud, Benjamin Buchloch & Jean-Hubert Martin, Fumio Nanjo, Djon Mundine, Jyotindra Jain, Louis Perrois, Carlo Severi, Sally Price, James Clifford, Jean Fischer e Guy Brett. Disponível em: <https://monoskop.org/images/4/44/Third_Text_6_Magiciens_de_la_Terre_1989.pdf> [último acesso em: 04/12/2023]
[7] Cf. Otília Beatriz Fiori Arantes, “Klee. A utopia do movimento”. Discurso, v. 7, n. 7, pp. 87-109, 1976. Disponível em: <https://revistafilosofica.saoboaventura.edu.br/filosofia/article/view/62> [último acesso em: 28/12/2023]
[8] Claudia Andujar, “Os desenhos Yanomami”. Arte em São Paulo, n. 5, março 1982.