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Povo Pankararu [Pankararu People]

Sobre ser natureza

Texto de Juliana Crispe para a exposição “Caatinga Fractal e o Encontro da Terra Seca, Água Doce e Água Salgada”, do artista Aislan Pankararu, com curadoria de Brás Moreau Antunes.

Há um cio vegetal na voz do artista.

Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto

de alcançar o murmúrio das águas nas folhas

das árvores.

Não terá mais o condão de refletir sobre as

coisas.

Mas terá o condão de sê-las.

Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos,

passarinhos...

(Manoel de Barros, fragmento do poema 

“Retrato do artista quando coisa”, do livro de mesmo nome)

Adentrando a exposição “Caatinga Fractal e o Encontro da Terra Seca, Água Doce e Água Salgada”, do artista Aislan Pankararu, com curadoria de Brás Moreau Antunes, percorremos um espaço de encantamento, como numa miração, que revela a imagem do sagrado não acessível aos portadores de visão engessada. Há uma essência que nos faz perceber que somos dimensões e amplidões da natureza. Nos interseccionamos com as obras produzidas por Aislan Pankararu se assim nos permitirmos. 

O movimento sinuoso e atmosférico da exposição provoca-nos a sensação de que percorremos uma paisagem outra, olhando a terra em suas entranhas e acessando um mundo vegetal que se desdobra em formas, viscosidades e texturas. Também nos suscita o movimento físico e simbólico das serpentes, animal sagrado para os povos indígenas e ribeirinhos, e presente nas culturas africanas.  

Somos tomados pela sensação de entorpecer-se de haver-se, como diz Manoel de Barros. Num lugar em que é possível captar outras dimensões de existências diversas, que se produzem somente na lentidão, no tempo que é outro tempo. Entorpecer-se é permitir-se acessar uma dimensão atemporal sobre a escuta atenta das coisas do mundo. Numa imersão serena, damo-nos o tempo vagaroso e inestimável que as obras de Aislan merecem.

Uma marca comum nas diversas culturas indígenas, o pensamento coletivo aparece como um liame entre todos os povos, o respeito com a Terra, a interconexão entre os seres, a compreensão do universo em sua totalidade e os seres humanos inseridos nessa rede de relações e reencantamento com o mundo. A arte indígena bebe desta cosmologia, transborda de uma coletividade, e, também, da subjetividade do corpo e do ser do artista. 

Aislan mergulha no macro e revela que ser micro é tão importante para a composição de uma constelação, ou de uma coletividade, que não se enxerga não como partícula, mas como o todo em si. Aislan ostenta o micro como potência que explode existências diversas e múltiplas às quais amiudadamente deixamos de olhar: ser poeira de estrela, cosmo, universo, ordem, organização, ou ainda uma planta ou organismo vivo que escapa da percepção dos nossos olhares. Existe, nas criações de Aislan, uma provocação em torno da integração daquilo que pensamos ser, com aquilo que realizamos. 

Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos.

(Ailton Krenak, na conferência “Ideias para adiar o fim do mundo”, no livro de mesmo título. São Paulo: Companhia das Letras, 2019)

Krenak defende a potência do sujeito coletivo, a coletividade e a expansão dos horizontes. Para descontruir as fronteiras e sentir os territórios em profundidades, o indivíduo coletivo, no cotidiano, necessita estar disposto a compreender aquilo que Ailton Krenak nos diz: não somos parte da natureza, somos A Natureza. Assim, nessa dimensão, entre ser micro e macro, subjetividade e coletividade, não somo oposições, mas sim sistemas presentes que rompem com os binarismos classificatórios da sociedade colonizadora, tornamo-nos integração, e não apenas o sujeito que observa, explora, degrada ou contempla.  

Aislan é esse cio vegetal. Cria com o corpo todo, em dimensão de partes, uma geometria orgânica que pode ser pensada através de uma ontologia fractal, de ser artista em uma infinidade de determinações que criam fissuras numa forma única para pensar-se em multiplicidades, porosidades, para além de uma natureza plena e integral.

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